Os debates sobre herança e partilha de bens são constantemente associados às ferrenhas disputas entre os herdeiros. Dessa forma, se, assim como o nascimento, a morte é uma certeza, é relevante a realização do planejamento sucessório em vida, organizando-se a partilha de bens antes do falecimento, evitando-se futuros conflitos familiares, além de impedir que a demora do processo de inventário traga prejuízos aos herdeiros.
No artigo desta semana, tratarei de dois dos mais importantes instrumentos de planejamento sucessório, bem como dos benefícios de sua utilização.
A princípio, cabe mencionar que os direitos sucessórios, ou seja, aqueles que decorrem da morte, no nosso direito brasileiro, estão divididos em duas partes: a herança legítima – que corresponde a 50% do patrimônio do falecido e que cabe aos herdeiros necessários – e a quota disponível – que corresponde aos outros 50% do patrimônio do falecido e que pode ser livremente disposta.
Assim, a legítima consiste na quota indisponível da herança, que deve, necessariamente, ser destinada aos herdeiros necessários, sendo estes os descendentes (filhos), os ascendentes (pais) na falta de descendentes e o cônjuge sobrevivente, se casado pelo regime da comunhão parcial e da separação eletiva e total de bens. Se o regime for o da comunhão parcial de bens, o direito à herança do cônjuge sobrevivente incidirá sobre os bens particulares do falecido porque sobre os bens comuns o sobrevivo terá direito à meação, e se o regime for o da separação eletiva e total de bens esse direito incidirá sobre todo o patrimônio do cônjuge falecido. Somente não há direito à herança se o regime for o da comunhão universal de bens, em que a meação do sobrevivente atinge praticamente todo o patrimônio do falecido, e se o regime for da separação obrigatória de bens, aquela imposta pela lei, por exemplo, em casamentos nos quais pelo menos um dos consortes tenha mais de 70 anos de idade.
No que se refere à parcela disponível do patrimônio, o autor da herança goza da liberdade de dispor de seus bens, podendo dispor sobre essa parte da maneira que preferir e a quem quiser, contanto que respeite o mencionado limite de 50% da herança que é destinada aos herdeiros legítimos.
Nosso ordenamento jurídico, dessa forma, limita a autonomia da vontade na disposição de bens, mas possibilita que o futuro autor da herança disponha sobre a parte correspondente a 50% de seus bens, por meio do planejamento sucessório durante a sua vida.
Um dos instrumentos no planejamento sucessório é o testamento, sendo este o ato pelo qual alguém dispõe de seu patrimônio para depois de sua morte. Através do testamento, pode o testador, por exemplo, aumentar os direitos de um dos herdeiros necessários em detrimento de outros.
Um exemplo prático. Imaginemos que um homem, casado e com um filho, tenha conquistado, em vida e antes do seu casamento em regime de comunhão parcial de bens, o total de quatro imóveis de mesmo valor. Caso viesse a falecer, sem deixar testamento, a esposa, casada em regime da comunhão parcial ou da separação total de bens, teria direito a 2 destes imóveis, ficando o filho com direitos sobre os outros 2 imóveis, visto que o cônjuge e o filho são havidos pela lei como herdeiros necessários e com os mesmos direitos. Entretanto, por meio de testamento, poderia este homem destinar 50% de seus bens – ou seja, a quota disponível – ao filho. Neste caso, o filho ficaria com 3 dos imóveis e a esposa somente com 1 imóvel. Em suma, diante da extensa gama de perspectivas do testamento, este instrumento garante que a vontade do testador, embora até certo ponto limitada, seja efetivada após o seu falecimento, em favorecimento de seu herdeiro de sangue.
Além disso, é possível também a realização de doação em vida aos futuros herdeiros, como adiantamento da herança ou por conta da quota disponível. A mais comum e mais indicada das formas de doação é aquela que é realizada com reserva de usufruto, ou seja, na qual o doador transfere a propriedade e retém para si os direitos de usar e gozar vitaliciamente do bem. Assim, apesar de o bem não ser mais propriamente do doador, será ele quem poderá usá-lo efetivamente ou alugá-lo, até a sua morte, quando o bem doado passará a pertencer integralmente àquele que recebeu a doação. O herdeiro que recebe o bem por meio de doação, passa a ser nu proprietário do mesmo, porque não tem o direito de usar e gozar do bem, tampouco pode vendê-lo, a não ser que assim consinta o usufrutuário.
Este instrumento – doação em vida – permite que a transmissão da herança seja realizada antes do falecimento, de modo que o herdeiro não seja onerado pela possível demora do processo de inventário, bem como pelos eventuais conflitos familiares ocasionados pela disputa hereditária.
É o caso, por exemplo, de uma mãe viúva ou divorciada que decide antecipar a herança que seria destinada aos seus dois filhos, seus únicos herdeiros necessários, para que estes não sejam onerados, após a sua morte, por todos os empecilhos causados pela demora e pelos custos do processo de inventário e da partilha de bens, além dos conflitos que poderão instalar-se entre eles após o falecimento materno. Assim, decide doar a um dos filhos um dos imóveis e ao outro o segundo imóvel, ambos tendo ou não o mesmo valor, porque a compensação de valores pode-se dar por conta da cota disponível, doações essas que se recomenda sejam realizadas com reserva de usufruto, garantindo para si, a mãe, o direito vitalício de fruição, gozo e uso dos imóveis, até o momento de sua morte, ocasião em que os bens passarão a pertencer integral e individualmente a cada um dos filhos. Neste caso, os tributos incidirão no momento da doação, o que assegura a aplicação da alíquota atual e sem os aumentos tributários que se anteveem no direito projetado.
No Brasil, em suma, as escolhas legislativas possibilitam o planejamento sucessório nos limites impostos pelo ordenamento jurídico, de modo a respeitar a vontade de uma pessoa que tenha bens, até o montante correspondente a 50% de seu patrimônio, por meio das mais diversas composições que produzirão plenos efeitos após a sua morte.
*Artigo Elaborado por Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.